A assistente social Priscila Lemos Lira, doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e podcaster na Práxis Preta, lembra que a Revolta dos Malês foi um importante levante político, considerado o maior levante urbano das Américas, constituído principalmente por negros e negras africanos escravizados e livres, sobretudo muçulmanos, conhecidos como os “Malês”. Havia, ainda, muitos crioulos, como eram considerados os negros escravizados nascidos no Brasil. Segundo Priscila, o movimento ainda inspira os movimentos negros contemporâneos, pois seu ideal por uma sociedade livre de opressões ainda é a meta da luta antirracista.
“A intenção do levante era a busca pela liberdade e o rompimento da opressão do sistema escravagista vigente. Embora não tenha alcançado seu principal objetivo, devido à violenta repressão do sistema colonial, que contra-atacou de forma desproporcional, e promoveu perseguições, invasões de domicílios, penas de morte e deportação dos envolvidos, o legado que a Revolta nos oferta até hoje é a existência de uma rede de resistências contra o regime escravocrata. Isso demonstra que não havia passividade por parte dos escravizados, tão pouco a naturalização dessa realidade. Houve sim muita luta e resistência, desde o sequestro em solo africano”, explicou.
De acordo com Priscila Lemos Lira, a consciência sobre a luta histórica da população negra é de suma importância também do ponto de vista subjetivo e simbólico. Historicamente, no Brasil, o processo de escolarização, a formação enquanto individuo e o conhecimento da contribuição do povo negro na sociedade constroem a imagem do negro escravo submisso e passivo. “Esta construção corrobora com a manutenção da ordem de opressão contra a população negra, individualizando e naturalizando o lugar subalterno do negro na sociedade brasileira. Isso contribui para a desresponsabilização do estado que possui uma dívida histórica com o povo negro, que resistiu e sobreviveu à barbárie desse crime contra a humanidade que foi a escravidão e que tem repercussões até hoje”.
Serviço Social
Historicamente, o Estado Brasileiro utilizou e ainda utiliza o mito da democracia racial e a teoria do embranquecimento para promover o apagamento da presença física e cultural de pessoas não brancas na sociedade brasileira. Isso se dá por meio de leis, repressão violenta, encarceramento e criminalização das populações negra e indígena.
Priscila Lemos Lira enfatiza que é preciso que assistentes sociais se questionem sobre qual é a repercussão do mito da democracia racial nas relações sociais, na formação e no cotidiano profissional. Citando a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, ela lembra que é urgente a desconstrução da história única, assim como o pacto da branquitude e a narrativa do colonizador. “É preciso incluir a visão de quem vive e viveu as opressões, ‘a história que a história não conta’, como lembra o samba enredo da Mangueira de 2019, o lugar da intelectualidade negra, a descolonização dos currículos e do planejamento cotidiano”, disse.
É importante que a sociedade saiba que o sistema de exploração capitalista se beneficia da hierarquização racial que o racismo produz, e que serão os corpos não brancos os mais violentados. A doutoranda da UFJF lembra que o ambiente acadêmico historicamente foi espaço de poder, da elite, e de reprodução da ordem vigente.
“Nas últimas décadas, presenciamos o maior abalo nesse ambiente com a presença e ‘levante’ dos alunos negros nas universidades públicas, em virtude das ações afirmativas (Lei nº 12.711/2012). Mais ainda são necessárias ações afirmativas epistêmicas, na pós-graduação, um maior número de professores negros e a revisão dos currículos que considerem as narrativas dos que sempre estiveram de fora desse ambiente, nossa “escrivência”, como nos ensina Conceição Evaristo”, ressaltou Priscila.
A Revolta
A revolta dos Malês ocorreu na madrugada de 25 de janeiro de 1835, em Salvador, na Bahia. É considerada uma das mais importantes revoltas de pessoas escravizadas ocorrida no Brasil. O levante foi conduzido pelos africanos escravizados que lutavam por sua liberdade. A ação fez os senhores da época tremerem e temerem novas insurreições semelhantes no Brasil. A resposta veio na forma de ampliação da repressão, violência e assassinato das pessoas escravizadas.
A Revolta dos Malês traz a tona o modus operandi da secular repressão do Estado. Até hoje não se sabe se Luisa Mahin, uma das organizadoras e mais conhecidas figuras desse levante, foi deportada para a África, já que era livre, ou se foi assassinada pelo Estado.
“Quantas mães da favela não sabem o paradeiro de seus filhos/maridos vistos pela última vez após abordagens policiais? Africanos livres muçulmanos tinham suas casas invadidas, reuniões com mais de três negros eram reprimidas por suspeita de conspiração contra a ordem. O sistema de segurança pública hoje invade barracos nas favelas sem mandados e assassina crianças, gestantes. As religiões de matriz africana são alvo de reiteradas ações de intolerância religiosa, a juventude negra é reprimida em suas expressões culturais, até o genocídio”, relata a podcaster na Práxis Preta, Priscila Lemos Lira.
De Luisa Mahin a Marielles, o racismo, o sexismo e o capitalismo violentam os corpos negros e indígenas, mas a resistência é secular! Desse modo, segundo Priscila Lemos Lira, o recado da Revolta dos Malês para a academia e o Serviço Social é que “é na luta que a gente se encontra […] chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês!” (trecho do samba enredo: “História pra Ninar Gente Grande”, da Estação Primeira de Mangueira, vencedor do Carnaval 2019 do Rio de Janeiro).
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