De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA 2016), quase uma mulher por minuto realiza aborto inseguro no Brasil, correndo o risco de morrer sem atendimento adequado, uma vez que não possuem recursos financeiros para acessar procedimentos, ainda que clandestinos, seguros.
“Ainda assim, governos não tratam os casos como deveriam, a fim de evitar mais mortes. Não podemos levar essa discussão para o campo pessoal. Ser contra ou favor não diminui os números de abortamento e mortes. Eles acontecem. Mas a garantia de procedimentos seguros e universais, via Sistema Único de Saúde (SUS), reduz drasticamente tanto as mortes, como os abortamentos, já que estes tendem a cair com a legalização. Neste sentido, os dados mostram que devemos ser aquelas que, com base em estatísticas e marcadores sociais, saem em defesa do aborto legal por defendermos a vida, além do direito individual de decisão sobre uma interrupção de gravidez ou não”, demarcou Tatianny Araujo, assistente social, mestranda do PPGSS UERJ e servidora pública da Saúde Federal.
Ela acrescenta que é preciso zelar pelo projeto ético-político do Serviço Social. “Ele nos coloca como defensoras de direitos e reconhece o direito à autonomia, à saúde integral e ao atendimento humanizado no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, tal qual deve ser feito no planejamento familiar e na defesa de uma maternidade plena para quem desejar (não compulsória)”.
Ameaças
A assistente social Franciele Santos, doutoranda em Serviço Social (PPGSS/UERJ) e professora de Serviço Social na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), alerta que a América Latina sofre fortes ameaças aos direitos individuais e coletivos em vários aspectos, principalmente nos que envolvem as decisões sobre os corpos e vidas das mulheres.
“Isso é resultado de uma colonização patriarcal, racista. Mesmo assim alguns países têm conseguido a legalização do aborto, o que sinaliza a necessidade de transpormos os espaços dos movimentos feministas, o que essa data, mas não só, permite fazer, discutindo de forma mais ampla e contribuindo com a conquista desse direito que impacta de forma positiva a vida das mulheres e das pessoas que gestam”, disse.
Ela explica que no Brasil a moral religiosa está muito presente e há uma hipocrisia operante que perpassa todos os poderes do Estado. “Em alguns países da América Latina e Caribe, a exemplo da Argentina e Chile, nos quais, mesmo depois de derrotas nas instâncias legislativas, em determinado momento a luta seguiu com grande mobilização da sociedade para adesão à pauta. A partir disso houve mobilização com o legislativo e executivo, até serem firmados compromissos com os movimentos em curso, inclusive em campanhas eleitorais”.
Serviço Social
Para Franciele Santos, considerando a formação em Serviço Social, é possível contribuir com a reflexão sobre a temática do aborto a partir de uma perspectiva crítica, com a visão de totalidade da realidade social, nos mais diversos espaços sócio-ocupacionais. “Podemos fazer isso por meio de ações pedagógicas, seja com os/as profissionais, usuárias/os dos serviços e /ou com a sociedade, e ainda em articulação com os demais movimentos sociais que dialogam com nosso projeto profissional, o qual preza pela liberdade e defesa dos direitos humanos”.
Na mesma perspectiva, a assistente social Josefina Mastropaolo, professora da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ, defende que o Serviço Social tem um papel a desempenhar dentro dessa temática na pratica profissional. “Muitas vezes somos nós a porta de entrada para essa demanda, principalmente nos casos de aborto previsto em lei. Temos que ajudar a formular a demanda, oferecer informações objetivas que apresentem a questão como uma escolha da mulher, sem julgamentos, articulando uma rede profissional e institucional”, explicou.
A professora acrescenta que, por outro lado, há toda a construção política que a profissão pode fazer. “E está sendo feita através das nossas entidades, espaços de debate e articulação, eventos, Rede de Assistentes Sociais pelo Direito de Decidir. Isso permite adensar a trama para que estejamos prontas para esta conquista quando o debate for aberto no âmbito parlamentar”.
Argentina
Josefina, que é argentina, explica o processo que levou à legalização do aborto no país vizinho em 2020. Desde meados da década de 1980 se organiza na Argentina um Encontro Nacional de Mulheres, que hoje é chamado de Encontro Plurinacional de Mulheres, Lésbicas, Trans e Travestís. O movimento começou reunindo mil mulheres e hoje congrega entre 60 e 70 mil, funcionando como instância que adensa pautas feministas.
“Em 2005 se articulou uma campanha nacional que congregou várias organizações de mulheres em torno da pauta da legalização do aborto, e apresentou vários projetos de lei. Até o último ser aprovado, foram apresentados oito projetos de lei. Mas um processo que me parece muito importante foi o de organização das mulheres, a rede de profissionais da saúde pelo direito de decidir, que foi de fato buscando caminhos para colocar a pauta nos atendimentos, construindo articulações possíveis para acolher mulheres que precisavam interromper a gravidez, pautando o debate nas universidades, nos conselhos”.
Entretanto, a professora destaca que a organização socorrista foi a que fez toda a diferença. “Mulheres apoiando mulheres para realizar abortos seguros, com pílulas, em casa. O socorrismo cresceu exponencialmente, e foi demonstrando para as mulheres que era possível escolher, de forma segura, acompanhadas, sem humilhação, sem culpa. As socorristas foram também sistematizando os dados das mulheres que acompanhavam e assim foram demonstrando que as mulheres que abortavam não respondiam ao estereotipo de ser mulheres imorais, monstruosas, que não têm amor para dar, ou que não tem ‘educação’. Ao contrario, eram mães de outras crianças, de quem cuidam amorosamente, trabalhadoras, mulheres com relacionamentos estáveis. Quando em 2018, depois de uma intensa mobilização, da qual vem a ideia de maré verde, o projeto de legalização foi rechaçado, as companheiras disseram: perdemos no Senado, mas legalizamos o aborto nas ruas”.
A assistente social Tatianny Araujo, que integra a Rede de Assistentes Sociais pelo Direito de Decidir e o Movimento Resistência Feminista, lembra que as mulheres lutam todos os dias na defesa de suas vidas e que essa é uma realidade mundial, sendo mais dura em regiões como a África, Caribe e América Latina. “Nossa luta vem de longa data, desde as colonizações, via processos de tráfico de pessoas, escravização e aniquilamento dos povos originários. Nossa vida é marcada por resistência. Infelizmente, segue o controle de nossos corpos e vidas. Neste sentido, ter uma data única, de nós mulheres de diversos países, para lutar por nossas vidas é muito importante. Avançamos na luta comum por direitos sexuais e justiça reprodutiva quando tiramos o dia 28 de setembro como dia de luta. E isso ocorreu no 5° Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado na Argentina, na década de 1990”.
Brasil
Países de economia dependente, com maior exploração da classe trabalhadora, são os lugares onde os direitos menos são alcançados. “Do ponto de vista das mulheres, com as bandeiras democráticas, como o direito ao aborto seguro, acontece a mesma coisa. Não se avança em leis e efetivação de políticas públicas. Essa aliança em torno dessa pauta amplia nossa luta, numa voz uníssona na defesa da vida das pessoas que gestam. Afinal, é importante ressaltar que a maior parte da mortalidade materna, dos abortamentos inseguros, ocorre onde o aborto não é legalizado, matando em maior número mulheres negras e indígenas. No Brasil, soma-se a baixa escolaridade, com mais de 40 anos ou menos de 14 anos, moradoras das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e vivendo sem união conjugal”, explicou Tatianny.
Para ela, o Brasil não difere muito de outros países da região latino-americana, onde esse debate é transformado em questão moral, religiosa, quando deveria ser sobre direito à escolha e de saúde pública. “O que ocorre aqui, e diferente da Argentina que legalizou recentemente, é a necessidade da construção de uma grande campanha nacional e unificada em torno da pauta. Aqui também sempre tivemos mulheres à frente dessa luta, organizações feministas e temos vários segmentos profissionais e ativistas pela descriminalização e legalização do aborto, mas precisamos ganhar a sociedade para a compreensão do tema, enfrentá-lo em todos os lugares onde atuamos. Fazer com que todos percebam que esta luta é de toda a classe trabalhadora, porque é ela quem perde suas companheiras, filhas, amigas diante do abortamento inseguro. Sabemos que uma onda neoconservadora, aliada ao ultraneoliberalismo assola o mundo, mas há resistências, como houve no Chile, Argentina e mesmo aqui, quando as mulheres são as porta-vozes de lutas como o #elenão e as maiores defensoras dos direitos e do fim dos governos de extrema-direita”.
E para a professora Josefina Mastropaolo, que também integra a Rede de Assistentes Sociais pelo Direito de Decidir, ocorrem avanços importantes no Brasil, com a capilarização da pauta nas organizações de mulheres, na multiplicação de organizações que apoiam outras mulheres, organizações de profissionais, de assistentes sociais. “Isso é importante porque pensemos que é uma discussão que tem que se dar em muitas camadas. A ilegalidade do aborto é parte das estratégias de controle dos corpos e subjetividades femininas, para que nós levemos adiante quotidianamente uma parte importante do trabalho necessário para a existência humana que é o trabalho reprodutivo, do qual a reprodução biológica faz parte. Então, é uma violência que é estruturante das relações capitalistas”, concluiu.
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