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7 de Setembro: a independência dos ricos às custas da exploração dos pobres

7/09/21 às 00:00
O modelo econômico mantido após a Independência do Brasil impactou e continua impactando o país e perpetuando a imensa desigualdade que o assola. Os reflexos estão explicitados na superexploração do trabalho e nas relações de poder da sociedade brasileira. A independência do país foi um movimento de elite que não promoveu mudanças ou reformas, e desconsiderou as populações negra e indígena, as mulheres e os trabalhadores em geral. Além disso, a narrativa imposta após a independência é centrada no sudeste do país, e transforma alguns personagens em heróis, relegando outros diversos “brasis” ao apagamento.

De acordo com o historiador e professor Wanderson Fabio de Melo, do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), existem diversas versões distintas acerca da Independência do Brasil. “Na versão oficial do ‘7 de Setembro’, a Independência do Brasil teria ocorrido após o ato viril e corajoso do jovem príncipe regente D. Pedro, que teria proclamado a Independência do Brasil às margens do rio do Ipiranga, na então Província de São Paulo. Essa versão reforça um posicionamento de que a história é feita por ‘grandes homens’, e estes homens são alçados à condição de ‘heróis’. A história oficial impõe a leitura de que a Independência do Brasil foi edificada por um ato do príncipe e, ademais, não houve grande conflito interno. Todas teriam aceito a proclamação heroica de D. Pedro. No entanto, a versão oficial construída pelo Estado Monárquico Brasileiro, que permaneceu após a Proclamação da República, bem como foi celebrada no Estado Novo Varguista, não resiste à investigação histórica”.

Longo processo conflituoso

A Independência do Brasil foi um processo iniciado em 1808, com a chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil, apoiada pela Inglaterra, fugindo da invasão de Napoleão Bonaparte a Portugal. Sendo assim, os laços entre Portugal e Brasil ganharam maior complexidade. O professor Wanderson Fabio de Melo explica que esta situação emancipou economicamente o Brasil com relação a Portugal, uma vez que houve o ato da Abertura dos Portos a todas as nações. Mas ainda faltava a emancipação política, que foi um processo longo e cheio de tensões.

“Com o fim dos conflitos napoleônicos, houve em Portugal a Revolução Liberal do Porto, em 1820. Isso exigiu o retorno a Família Real a Portugal. Para o Brasil, esse retorno implicaria na volta ao Pacto Colonial e o fim da emancipação econômica. As pressões para o retorno ao Pacto Colonial levaram os senhores de terras e de gente no Brasil a apoiar a proclamação de 7 de Setembro de 1822, com o intuito de se conservar a emancipação econômica.  A história oficial enfatizou o ato de D. Pedro. Entretanto, houve outras figuras históricas como José Bonifácio, um grande representante dos proprietários de terras que avançaram economicamente com a Abertura dos Portos. Houve, ainda, papel decisivo da princesa Leopoldina, uma articuladora política notável para os padrões da época. Foi Leopoldina que presidiu a Sessão do Conselho de Estado que formalmente decidiu pela Independência do Brasil. Entretanto, as ações de Leopoldina sofrem apagamento. Favoreceu-se a construção do herói viril e masculino. Além disso, na Bahia o processo de Independência levou à uma guerra civil que durou até 2 de julho de 1823. Lá, a independência é comemorada em 2 de julho. No Pará, a adesão ao Brasil independente ocorreu em 15 de agosto de 1823. Como se percebe, o processo de Independência foi complexo, não se resumiu ao atendimento de um grito do príncipe”, explicou.

Independência só para a elite

A partir dessa compreensão da complexidade da Independência do Brasil e dos atores e interesses econômicos que articularam o movimento, é mais fácil compreender que essa emancipação foi direcionada à elite econômica, especialmente os agroexportadores que já tinham obtido vantagens desde a abertura dos portos, em 1808. O restante da população literalmente carregou nas costas o Estado Agroexportador Brasileiro desde então.

“Não foi uma revolução brasileira e não veio acompanhada de nenhuma transformação e nem reformas. Não houve um questionamento ao latifúndio colonial. O poder não foi partilhado. Foi uma revolução feita por cima, sem participação popular. Isso foi mantido na República, e mesmo com Vargas, conciliando com industrialização. Não houve reforma agrária e nenhuma prática republicana, como houve nos EUA, por exemplo, que fez reforma agrária com dinamização maior da sociedade e formação de um capitalismo completo. E o latifúndio colonial permanece até hoje, com alguma modernização. Hoje é mecanizado. A partir dos anos 50 o trabalhador braçal passa a morar nas periferias da cidade. A nossa sociedade extremamente desigual decorre disso e de questões raciais e de gênero”, explicou.

O professor completa, explicando que a lógica de superexploração da força de trabalho vem do campo e é incorporada na industrialização e no trabalho urbano. Gastos relativos a vestuário e aluguel não foram considerados para a composição do salário-mínimo, por exemplo. “Nunca na história do Brasil se tentou mexer nisso. E isso foi radicalizado durante a Ditadura Civil Militar a partir do Golpe de 1964. Na redemocratização as questões da reforma agrária foram boicotadas. As relações não foram alteradas e chegamos até aqui”.

Resistência do povo

Para a professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Evelyne Medeiros Pereira, é inegável o quanto certas máximas se tornaram comuns na trajetória da formação social brasileira. Ela cita como exemplos o “façamos a revolução antes que o povo a faça!” e “algo deve mudar para que tudo continue como está” que ilustram bem alguns dos marcos históricos brasileiros, suas transições e a forma como os de cima operaram para, justamente, manterem-se acima.

“Mas isso nos lembra também da importância de relembrarmos nossas lutas, a resistência dos de baixo, do compromisso com o caminho árduo e pedregoso de reescrever a história a partir do ponto de vista da maioria de nosso povo. A independência é um desses marcos que reflete muitas mudanças, mas também muitas permanências. É inegável a sua importância para o desenvolvimento e posterior consolidação da condição do capitalismo brasileiro, igualmente inegável sua importância para a natureza dependente desse modo de produção entre nós, fruto da opção, por parte das classes dominantes, de submeter a economia e sociedade nacionais a interesses alheios aos do seu povo”, disse.

Ela lembra que a profunda e violenta pilhagem das riquezas do país, e a enorme exploração e desigualdade que decorre disso, demandam para sua manutenção, formas de dominação com limites muito estreitos para uma mudança social. “O medo da ameaça dos de baixo, de sua revolta, de sua forma de se reinventar e de resistir, fez com que a independência, assim como outros processos de transição, se desse de maneira parcial e oficialesca, sem a participação, de fato, das classes populares. Ou, em outras palavras, de maneira lenta, gradual, segura e controlada para que não ameaçasse o monopólio do poder político das classes burguesas emergentes. Assim, em lugar de uma ‘autêntica’ revolução, ‘debaixo para cima’, realizam-se arranjos de cúpula, ‘de cima para baixo’, implicando na ausência do elemento insurrecional de natureza democrática, nacional e popular. E foi nessa trilha pela qual a burguesia brasileira se consolidou enquanto sócia menor do grande capital, moldando suas instituições de dominação, operando sem ruptura com seu passado colonial, através de uma série de mudanças e processos de renovação da dependência em relação aos países centrais”.

O papel do Serviço social na transformação

O progresso das classes dominantes no Brasil foi possível porque essas elites se alimentaram do atraso das classes baixas. A regra no Brasil foi, e continua sendo, modernizar mantendo condições de vida e trabalho degradantes, pautadas na divisão regional do trabalho, na remuneração do trabalhador abaixo do valor necessário, no monopólio da terra, no racismo estrutural, na estrutura de poder do Estado centralizada e autoritária, sem a ampliação democrática e sem as reformas sociais típicas de um país soberano, como a reforma agrária e urbana.

A professora Evelyne Medeiros Pereira explica que, nesses termos, a independência não pode ser entendida como parte de um processo de libertação nacional e popular. Ela deixou à margem de suas “conquistas civilizatórias” milhões de brasileiros e brasileiras que até hoje a cada ano gritam denunciando a incompletude e a farsa do 7 de setembro. Para ela, os dilemas do presente suscitam incursões no passado, pois os tempos são de ideias da força que  ameaçam aniquilar a força das ideias. Isso se dá na tentativa de restabelecer as bases conservantistas e reacionárias da classe dominante e de seus privilégios históricos incrustados no Estado.

“Por isso, também, o estudo sobre a realidade brasileira tem tomado renovado fôlego e relevância, inclusive no Serviço Social, recuperando um legado construído por grandes acontecimentos e lutas cujo enredo não tem como centro o heroísmo dos vencedores. Retomá-lo e reinventá-lo é uma tarefa necessária e urgente à atual geração de pesquisadores/as, educadores/as e assistentes sociais contra a intolerância dos de cima. A construção de uma agenda e de um campo de debate comum ao Serviço Social e suas entidades representativas, articuladas com as lutas populares e movimentos sociais, cumpre um papel significativo nesse caminho de combate ao histórico cerceamento de trabalhadoras/es, povos e comunidades tradicionais nos rumos do país e no acesso às riquezas socialmente produzidas. Sejamos parte da construção de uma saída para o Brasil junto com essa gente pobre arrancando a vida com a mão na tortuosa e tão necessária afirmação da possibilidade de um tempo no qual organize, ela mesma, sua capacidade criativa e produtiva”, concluiu a professora.

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