Na semana em que se comemora o Dia Internacional das/os Trabalhadoras/es (1 de maio), é importante promover uma reflexão sobre a visão acerca do trabalho que existe dentro da formação em Serviço Social. É preciso que haja uma postura crítica diante deste tema no capitalismo e, para isso, torna-se imperioso retomar as categorias da crítica da economia política na tradição marxista para desvendar a questão social, considerando as particularidades da formação social brasileira nas suas relações globais com a totalidade das relações entre capital e trabalho. Entre essas categorias, destacam-se a Lei Geral da Acumulação Capitalista, a acumulação primitiva e a exploração da força de trabalho como meios para produzir valor-capital nas relações sociais de produção capitalista.
Para a professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ana Cristina Oliveira de Oliveira, ao aprofundar a compreensão dessas categorias, é necessário entender como as profundas mudanças no mundo do trabalho são produtos das relações capitalistas relacionadas às determinações sócio-históricas que particularizam a formação social brasileira.
Ana Cristina, que também é coordenadora-geral do GTP “Trabalho, Questão Social e Serviço Social” da Abepss, fala em nome do grupo a partir do acúmulo da atual gestão e de gestões anteriores. O GTP enfatiza que a intrínseca relação entre trabalho e questão social na configuração do desenvolvimento capitalista, em particular, do capitalismo dependente brasileiro, só se torna compreensível quando se apreendem as relações fundantes da sua forma específica. E assim, apreender a relação entre trabalho e questão social tendo como marco a colonização e a sociedade capitalista dependente, que a sucedeu, com uma estrutura desigual social, racial e sexual de forma estrutural e determinante das relações sociais como um todo.
“No GTP, identificamos tendências pós-modernas e conservadoras no âmbito da relação trabalho e questão social com a presença de análises liberais e fragmentárias sobre o trabalho e uma significativa incidência do debate da pobreza relacionada à inclusão social, à gestão empresarial, à ‘nova’ questão social e às novas capacidades de capital humano”. Por isso, alertamos as/os pesquisadoras/es sobre a importância de retomar as categorias da crítica da economia política para explicar a questão social na sua totalidade e como parte do movimento da sociedade capitalista. O debate está se descolando disso, o que gera complicações quando se fazem os ajustes ou revisões curriculares”, explicou.
Currículo
A professora frisa que, para entender como se opera esse mecanismo na formação social brasileira, é indispensável retomar essas categorias, evitando o viés de autonomizar o debate da pobreza e da política social desse núcleo duro.
“Precisamos avançar nas formas do trabalho, cada vez mais alienado, explorado e expropriado que, no contexto da pandemia da COVID-19, acirraram as desigualdades e expuseram os traços antidemocrático, conservador e reacionário da burguesia e seus representantes no governo. Hoje estamos diante de trabalho escravo contemporâneo, da intensificação do trabalho, da precarização do trabalho, da plataformização, da uberização e de outras tendências contemporâneas de exploração capitalista do trabalho. Portanto, salientamos a centralidade do trabalho para a compreensão da questão social como eixo articulador das Diretrizes Curriculares da ABEPSS”, alertou.
Marcela Soares, também professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF, concorda com a colega quanto à necessidade de retomar a centralidade do trabalho e da questão social nas discussões curriculares. Para ela, essa perspectiva é condição fundamental para a compreensão dos dilemas ontológicos da história da humanidade.
“É preciso ter a compreensão de como a acumulação capitalista não sobrevive sem a extração de mais-valor, sob a forma do trabalho estranhado e tomado em sua forma abstrata. Do mesmo modo, a centralidade do trabalho e da questão social nas análises da vida social perpassa a apreensão das contradições intrínsecas às leis tendenciais econômico-sociais capitalistas, e, por sua vez, suas contratendências. A ponderação para o tempo atual é que ainda que exista, cada vez mais, um maior contingente de trabalhadores e trabalhadoras desempregados/as ou subempregados/as, a exploração da força de trabalho é vital para a produção e reprodução deste modo de produção. E é pela centralidade do trabalho que podemos apreender a questão social e suas distintas expressões”, defendeu.
Uberização e plataformização
Marcela explica que as “novas” formas de inserção laboral não excluem a imprescindibilidade do trabalho humano. Isso acontece mesmo que se tente ocultar o vínculo trabalhista ou invisibilizar trabalhadores e trabalhadoras que trabalham nas plataformas de entrega ou de microtrabalho, seja para aperfeiçoar ou monitorar as mídias sociais, seja para garantir o engajamento de digital influencers e corporações.
“Reforçar a centralidade do trabalho e da questão social para a formação de assistentes sociais significa garantir a análise das causas e consequências das atuais transformações promovidas pela uberização e plataformização do trabalho, assim como pela contrarreformas trabalhista e da previdência. Esse movimento exprime a melhor interpretação da realidade, não extinguindo a diversidade da conformação histórica do assalariamento brasileiro, com a racialização, a generificação e a regionalização da nossa força de trabalho, que possui em suas condições cotidianas a superexploração. Com isso, há uma expropriação daquilo que deveria corresponder ao valor da sua força de trabalho e dos seus anos futuros de vida”, disse.
Escravidão contemporânea
Com a intensificação do trabalho, aumentam a plataformização e as precarizações generalizadas, assim como os episódios de trabalhadoras/es resgatados em condições análogas ao trabalho escravo. A existência de um grande contingente de superpopulação relativa garante a submissão das pessoas a formas degradantes e ultrajantes de exploração da força de trabalho.
“Quando somada ao processo particular brasileiro de mercantilização da força de trabalho e à precarização atual das relações trabalhistas, isso permite a expansão e naturalização da violação dos direitos humanos. É importante ressaltar, dentro da apreensão de Marx sobre a Lei Geral da Acumulação Capitalista, como o investimento em aumento da produtividade promove a existência de uma população excedente de força de trabalho, que pressiona o sobretrabalho da parte ocupada das classes trabalhadoras. Isso ocorre para garantir maiores taxas de exploração e lucro, e também como movimento contra-arrestante. Tudo isso resulta, por sua vez, no aumento das fileiras da superpopulação relativa”, explicou.
Longas jornadas laborais e ausência de descanso suficiente interjornada e/ou intrajornada têm se tornado um lugar comum na vida das classes trabalhadoras. Ainda que haja estatísticas sobre o aumento de pessoas subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas, há, por outro lado, pessoas que estão ocupadas com longas jornadas ou em múltiplos “bicos” e com ausência de repouso suficiente para recomposição das suas energias físicas e mentais.
A professora Marcela Soares lembra que, já antes da legalização da terceirização irrestrita com a Lei 13.429/2017 (entre 2010 e 2014), a terceirização correspondia a aproximadamente 90% das pessoas resgatadas nos dez maiores flagrantes de escravidão contemporânea. Após 2017, até 2022, houve um aumento de 300% do número de pessoas resgatadas. Marcela ressalta que, somente em 2022, das 2.575 pessoas resgatadas, 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e 39 anos, 51% residiam no Nordeste, 58% eram nordestinas, 83% se autodeclararam como negras (pretas e pardas), 15% como brancas e 2% como indígenas. As atividades rurais lideraram o número de pessoas resgatadas com 87% do total. A exceção nestes 28 anos de inspeção do trabalho foi o ano de 2013, em que a construção civil foi majoritária. Diante deste quadro, é impossível negar a centralidade do trabalho e da questão social para a análise sistemática das adversidades que a sociabilidade capitalista engendra e para enfrentar justamente o cerne do problema.
Neste mês do trabalho, a Abepss é parceira do seminário “Capitalismo contemporâneo, crise e neoliberalismo no Brasil” promovido pelo Mestrado Acadêmico em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (MASS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Saiba mais clicando aqui.