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As manifestações da discriminação racial no Brasil e o papel do Serviço Social na luta antirracista

21/03/22 às 00:00
O racismo tem uma manifestação particular na realidade brasileira e forja a constituição da identidade nacional. No Dia Internacional Contra a Discriminação Racial, 21 de março, é preciso compreender como a discriminação racial se apresenta e opera no Brasil atual e quais as consequências disso para as populações discriminadas e para o conjunto da sociedade brasileira. Deste modo, é possível pensar o combate ao racismo estrutural numa perspectiva de radicalização antirracista, incluindo o papel da formação em Serviço Social e da atuação de assistentes sociais no processo.

A professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Rachel Gouveia Passos, colaboradora do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que o racismo estrutura o capitalismo e é reproduzido pela sociabilidade burguesa. E que as distribuições de poder se dão a partir da racialização e da generificação da existência.

“Gênero, raça, classe, sexualidade estão imbricadas. As localizações sociais, os acessos, a construção dos papeis sociais, a constituição subjetiva, objetiva, as identidades, a dinâmica política, econômica, social, ética e estética são perpassadas pelas relações de gênero, raça, classe, e sexualidade. A ordem burguesa é moldada a partir de toda a herança colonial. É preciso entender o quanto racismo, patriarcado, cisheteronormatividade, LGBTQIA+fobia, e capacitismo estruturam a sociedade moderna e isso vai forjar as distribuições e os acessos de maneiras distintas. Isso vai forjar a divisão do trabalho e como o mundo vai se dividir entre ocidente e oriente, norte e sul. Entender isso para entender como se manifesta o racismo na realidade brasileira. Essas manifestações particulares vão forjar a história, a cultura, a identidade nacional, valores morais, éticos, a constituição subjetiva da população brasileira”, disse a professora.

Ela segue explicando que não há como pensar no Brasil sem pensar na sua história colonial e que a invasão das américas moldou a história brasileira e o desenvolvimento econômico, cultural, político, ético, e estético das relações. Tudo isso imbricado com a miscigenação que foi estimulada enquanto estratégia política e econômica da realidade brasileira. “Isso nos atravessa com muitas questões. Vai nos atravessar com o processo de discriminação racial. Quanto mais determinados corpos se aproximam da identidade branca, se afastam da discriminação racial porque se relacionam com uma certa idealização da branquitude, da brancura enquanto modelo ideal de humano”.

Pacto da branquitude

Rachel Gouveia Passos cita outra professora, Cida Bento, para lembrar que há um pacto narcísico da branquitude, não só de silenciamento, mas de pactuação da idealização do “eu ideal” forjado pela branquitude idealizada a partir da Europa enquanto centro mundial da história, da representação da humanidade, da cultura, da religião, da civilização.

“Isso implica em quem tem acesso à educação, renda, salários dignos, saúde, cultura, lazer, esporte. O indivíduo se constitui numa sociedade racialmente constituída e ele se vê nessa sociedade a partir do olhar do outro. Esse outro é como a branquitude me enxerga enquanto pessoa negra e como eu me constituo ou não enquanto pessoa negra. Lembrando Fanon, quantos negros não se utilizam da máscara branca, de se embranquecer para também se proteger de uma sociedade que destrói o que ‘merece’ a destruição (negros, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, LGBTQIA+). Todos nós somos atravessados pela racialização da existência. A questão é o quanto a gente sabe onde estamos localizados. Será que no processo de existência as pessoas brancas conseguem se enxergar como beneficiadas nesse processo da branquitude? Na construção da formação social brasileira, um dos pensamentos que influenciou a formação do direito penal, que forjou a própria Medicina, Psiquiatria, Serviço Social, Enfermagem, dentre outra áreas de conhecimento, foi o pensamento eugênico”, explicou a professora, que também é coordenadora do Projeto de Pesquisa e Extensão Luta Antimanicomial e Feminismos e do Projeto de Pesquisa e Extensão Encruzilhadas: diálogos antirracistas;  e integrante do GTP ampliado Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Feminismos e Sexualidades da Abepss.

Rachel lembra que na sociedade brasileira o sujeito perigoso é o negro. Ele representaria perigo, medo e violência, que merecem ser destruídos. Por um lado, por meio desse pensamento, há a criminalização da existência negra. E por outro lado, inclusive pela Psiquiatria, você tem o movimento de forjar o louco, a doença mental, a pessoa negra que não responde por si. “Há a naturalização da discriminação como componente das estruturas da sociedade brasileira. Isso perpassa e atravessa as instituições: famílias, instituições de saúde e de educação, políticas públicas, formações profissionais”.

Ainda hoje, o racismo de se apresenta desse modo e a professora Rachel Gouveia Passos ressalta que é necessário o reconhecimento da naturalização da destruição da existência negra, subjetiva e objetiva, para que seja possível avançar numa pauta antirracista.

Racismo estrutural

Na mesma perspectiva, a professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp – Baixada Santista) Márcia Campos Eurico, assistente social, explica que a sociedade brasileira é estruturalmente racista, o que implica na hierarquização das pessoas a partir da classificação étnico-racial, cujo modelo de humanidade se assenta nos valores eurocêntricos. A herança escravocrata pode ser identificada nas diversas expressões da questão social presentes ainda hoje e que impõem à população negra e aos povos indígenas sucessivas violações de direitos fundamentais. A mesma herança retroalimenta os privilégios da parcela branca da sociedade brasileira, que pode até admitir que haja uma desigualdade social, mas atrelada à condição econômica e ao mérito individual, elemento que mascara a violência colonial e seus desdobramentos cotidianos. 

Ela lembra que a intersecção das opressões agrava ainda mais a condição de vida da população negra no Brasil, o que se observa quando se entrecruzam os indicadores de raça/cor, relações patriarcais de gênero, sexualidade e classe social.

“Neste sentido o combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação racial é indissociável da luta democrática. No Brasil, o mito da democracia racial sempre mascarou a dura realidade da população negra e indígena e há que se dizer que a explicitação da discriminação étnico-racial no país assume centralidade na arena política a partir dos diversos segmentos que compõem o Movimento Negro e o movimento de Mulheres Negras. As denúncias se intensificam na década de 1980 e ecoam na Constituição Federal de 1988, que incluiu o crime de racismo como inafiançável e imprescritível”, disse.

Além de estarem explícitos na desigualdade de acesso aos bens e serviços, os impactos da discriminação e do racismo estrutural se materializam na vida de pessoas negras por meio dos altos índices de mortalidade materno-infantil; de condições insalubres de moradia; da dificuldade de acesso à agua e saneamento básico; da negação dos direitos trabalhistas;  da criminalização dos pobres; da presença violenta do Estado nas periferias e favelas; das medidas arbitrárias encobertas pelo discurso de “guerra às drogas”; do encarceramento em massa; e do genocídio da população negra; entre outras violências institucionalizadas.

“Engajar-se na luta antirracista é uma tarefa de todas/os/es que cotidianamente realizam a crítica da sociedade capitalista, que em tempos de expansão das ideologias neoconservadoras e dos estigmas, preconceitos e discriminações a ela inerentes, torna a apreensão da questão social, em suas múltiplas determinações, um desafio gigantesco. As relações sociais se reproduzem no cotidiano, de maneira imediata, reificando ações pautadas na exploração, dominação e opressão em virtude da condição de classe, da origem racial, dos papeis de gênero, da identidade de gênero, da orientação sexual e do lugar de nascimento, que tem como finalidade reforçar a diferença entre os seres humanos, enquanto fator que justifica a superioridade de um grupo sobre o outro”, explicou a professora Márcia Campos Eurico.

O papel do Serviço Social

Ainda de acordo com a professora da Unifesp, é preciso um esforço de produção de conhecimento para além do circuito eurocentrado. Para ela, este é um imperativo ético para todas/os que estão comprometidas/os com a luta anticapitalista.

“A formação profissional em Serviço Social deve incorporar na dimensão teórico-metodológica a premissa de que há entre o racismo e o capitalismo uma articulação fortalecida pela ideologia racial, essencial para a dinâmica das relações sociais na contemporaneidade e que justifica, ainda que não explique, o pauperismo de parcela majoritária da população negra e indígena no país. A permanência histórica desses grupos, que escaparam do extermínio total, em patamares desumanizantes e a forma como as políticas públicas vêm se desenvolvendo sob o mito da democracia racial leva a uma pretensa inclusão dos diferentes no acesso aos bens e serviços, cunhada pelo discurso da igualdade jurídica”, explicou.

Para ela, assistentes sociais precisam se comprometer com as demandas da classe trabalhadora que é diversa e plural e a educação para as relações étnico-raciais é o primeiro passo, porque pressupõe a valoração não hierárquica dos três grupos fundamentais para a formação da sociedade brasileira e foca na descolonização dos currículos.

“O combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação étnico-racial exige, na mesma medida, o combate à sociedade de classes, à desigualdade de gênero, bem como o respeito à diversidade sexual, entre outras garantias individuais cotidianamente violadas. A não-discriminação aparece como um dos princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do(a) Assistente Social, aprovado em 1993 e os debates protagonizados pelas(os) profissionais engajadas(os) na luta antirracista representam um marco na profissão, à medida que permitem desvelar as determinações presentes na vida social e que requerem outras mediações que permitam a análise do movimento do real, naquilo que representam as particularidades da população negra brasileira”, concluiu.

Corroborando o pensamento de Marcia Campos Eurico, a professora da UFRJ Rachel Gouveia Passos também abordou o papel do Serviço Social na luta antirracista. Para ela, é necessária a radicalização de uma formação antirracista. Isso exige não apenas incluir disciplinas que debatam a questão, mas que o debate atravesse toda a grade curricular.

“Não pode ser debate de especialistas. Para uma formação crítica, é necessário que atravesse toda a formação. Precisa abrir concursos públicos que considerem na sua pontuação a inclusão desse debate. Concursos específicos para a área, quando não houver profissional no curso, intelectuais que tenham uma trajetória no debate. Mas a questão não é exclusiva para quem tem trajetória neste debate. Temos que incorporar a pauta nos encontros de pesquisadores de Serviço Social, para além de GTPs específicos. Precisamos levar para dentro dos espaços socio-ocupacionais, para os operadores diretos das múltiplas políticas, incluir no debate o quesito raça-cor, o conhecimento da Política Nacional de Saúde da População Negra, a produção acadêmica sobre o sofrimento psíquico ocasionado pelo racismo”, defendeu.

A professora concluiu ressaltando que o Serviço Social, numa perspectiva antirracista, vai entender os diversos atravessamentos do racismo estrutural na constituição do capitalismo, na realidade brasileira, e na formação profissional que não está isenta desse atravessamento. “Somos todos racializados. É fundamental que nos localizemos e façamos a produção científica e acadêmica sobre os impactos do racismo na população negra e no interior das unidades acadêmicas. Não estamos isentas enquanto assistentes sociais. E essa radicalização da perspectiva antirracista deve vir com a incorporação dos debates promovidos pelos movimentos sociais”, concluiu.

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