É um prazer ter você aqui! Digite abaixo seu termo de busca

Enquanto miséria avança, Governo ataca serviços de saúde mental e deixa população adoecer

8/10/21 às 00:00
Falar de saúde mental é falar de vida. E o momento pelo qual o Brasil passa, com ataques e desmonte às políticas de saúde mental traz consequências, com adoecimento da população em um cenário de aprofundamento das desigualdades e aumento da fome e da miséria aliados a uma pandemia que agrava ainda mais a situação.

A assistente social Fernanda Almeida, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da Faculdade Paulista de Serviço Social (Fapss-SP) explica que existe uma questão estrutural, desde o golpe de 2016, e até antes, relacionada aos ataques que as políticas de saúde mental vem sofrendo.

“Há uma discussão em torno das mudanças no campo da saúde mental. Uma contrarreforma acontecendo na área com um conjunto de retrocessos. As mudanças têm ocorrido por meio de portarias no interior da própria Rede de Atenção Psicossocial (Raps). No Governo Bolsonaro, aprovaram uma nova política de saúde mental que na verdade é a representação da contrarreforma psiquiátrica. A modificação na Lei, estruturalmente, traz como principal marca de retrocesso o retorno de hospitais psiquiátricos, maior incremento de recursos para comunidades terapêuticas, principalmente para álcool e drogas, adolescentes internados junto com adultos. E técnicas que violam direitos humanos, como eletrochoque, voltam a fazer parte como possibilidade de indicação. As mudanças reatualizam a mercantilização da loucura. Tiram do centro do debate o tratamento em liberdade e em comunidade. É um retrocesso na luta por uma sociedade sem manicômios e em que a liberdade é terapêutica”, disse.

Ela acrescenta que existe uma narrativa, sobretudo no campo do álcool e outras drogas, justificando as medidas com a suposta existência de uma "epidemia" de álcool e crack, o que favorece convênios com entidades privadas e religiosas, na direção da desobrigação do Estado. Outro retrocesso foi a tentativa de revogar todas as portarias que ainda estruturam os princípios da Reforma Psiquiátrica.

“A pandemia chama a atenção para um aspecto que é a ideia de condições de isolamento e desigualdade social. Temos uma geração marcada pelo luto, adoecimento e condição de vida adoecedora. E está coincidindo com esse momento de desmonte da Raps. É fundamental o engajamento dos serviços de saúde mental nos moldes da Reforma Psiquiátrica. A pandemia por si só já justificaria o fortalecimento da rede, uma vez que aprofunda problemas próprios da sociedade neoliberal, o que ainda é mais aprofundado pelo Governo atual”, explicou.

Coletiva

A professora, que também atua na Rede Pública de Saúde do SUS, em Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS-AD), acrescenta que a saúde mental se popularizou. “Mas saúde mental não é bem-estar, necessariamente. É uma saúde de natureza coletiva. A simplificação como bem-estar também é uma apropriação do mercado e faz o esvaziamento do sentido político. Vimos o quanto o isolamento produz doença e a mesma sociedade que fala sobre isso quer internar o ‘louco’, o diferente. Temos uma possibilidade de refletir sobre isso, política e coletivamente”.

Rachel Gouveia Passos, professora adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), chama a atenção para o desmonte dos programas de atenção à saúde mental que foram criados na perspectiva da Reforma Psiquiátrica. A política de saúde mental vem sendo desenvolvida desde o início dos anos 90 e se acelerou nos anos 2000. A partir de 2010, muitas legislações foram conquistadas e houve o direcionamento do financiamento da política pública vinculada ao Ministério da Saúde.

“Já no final do Governo Lula e início do Governo Dilma ocorrem disputas dentro do aparelho estatal. Forças conservadoras religiosas, comunidades terapêuticas e a Psiquiatria tradicional disputam o financiamento, incluindo a política de drogas do Ministério da Justiça. A partir do golpe de 2016, temos também a saída de coordenadores de saúde mental, álcool e outras drogas. Psiquiatras conservadores assumem as políticas no Governo Temer e ganham força. O que ocorre, então, á uma contrarreforma com paralisação dos equipamentos substitutivos da lógica manicomial, avanço de financiamento a comunidades terapêuticas e aumento de leitos psiquiátricos, ambulatorização da assistência, o que congela a Rede de Atenção Psicossocial. E tudo isso é agravado com a pandemia que revela a profunda desigualdade social no Brasil com imbricamento com raça, gênero, classe, território e sexualidade. Principalmente a população negra sofre com o desmonte e precarização da politica de saúde mental no país. E isso vai impactar na Assistência Social”, disse.

A professora, que também coordena o Projeto de Pesquisa e Extensão Luta Antimanicomial e Feminismos e o Projeto de Pesquisa e Extensão “Encruzilhadas: diálogos antirracistas”, acrescenta que, com a pandemia, houve suspensão dos atendimentos presenciais porque a prioridade era para quem estava contaminado por coronavírus. Muitas pessoas ficaram sem assistência em saúde mental e tiveram seus quadros agravados. “A pandemia vem produzindo impactos que a gente ainda não mediu na saúde mental da população negra, e há atrelamento às desigualdades. A pandemia revela e aprofunda essas desigualdades. Há aumento do abuso de álcool e outras drogas, da violência contra as mulheres. Há dificuldade de elaboração do luto, um luto sem despedida, angústia e tristeza, dificuldades com o isolamento social, aumento do trabalho doméstico para mulheres. Tudo isso impacta a saúde mental da população”.

Resistência

Rachel Gouveia Passos integra o GTP ampliado Serviço Social, Relações de Exploração/Opressão de Gênero, Raça/Etnia, Feminismos e Sexualidades da Abepss e defende que uma das saídas possíveis, na direção do projeto ético-político do Serviço social, com cuidado territorial, que defenda autonomia, direitos humanos, e emancipação, é pensar a articulação entre os movimentos sociais, entidades e coletivos negros, de mulheres negras. Ela explica que eles criaram possibilidades no território de favelas, de periferias, não só distribuindo cestas básicas e EPIs, mas realizando agenciamento coletivo com resistência de vida, para que as pessoas não morram, não apenas de Covid-19, mas de pobreza.

“É preciso fortalecer novas perspectivas de produção do cuidado territorial de maneira articulada com os equipamentos de saúde mental. Estamos fazendo isso por meios de projetos de extensão, em especial na luta antimanicomial e dos feminismos dentro do território de favela. Articulamos com a Residência Multiprofissional em Saúde Mental, incluindo a Universidade nesse debate. Os coletivos de luta antimanicomial também são uma forma de resistir. A reversão do chamado ‘revogaço’ de Bolsonaro das portarias de saúde mental só foi possível graças às articulações das entidades. Temos que resistir na perspectiva da micropolítica e da macropolítica aos ataques do atual governo”, defendeu.

E os movimentos de Luta Antimanicomial seguem resistindo e se articulando para proteger os avanços que o Brasil obteve. No dia 7 de outubro foi realizado o Ato de Mobilização para a 1ª Conferência Popular Nacional de Saúde Mental Antimanicomial 2021. Juliana Iglesias Melim, professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que compõe a Coordenação Nacional da Abepss e representa a Associação no Conselho Nacional de Saúde (CNS) e na Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, participou do evento representando a Entidade.

Retrocessos

Fabíola Xavier Leal, que também é professora do curso de Serviço Social da Ufes, e representante da Abepss na Comissão de Recursos Humanos e Relação de Trabalho do Conselho Nacional de Saúde (CNS), alerta que todas as conquistas do movimento da Luta Antimanicomial em defesa da Reforma Psiquiátrica Brasileira dos últimos 30 anos estão em risco. “Há uma prioridade para o financiamento de serviços privados, como clínicas/hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas de cunho religioso. Ambas as instituições reproduzem a exclusão, isolamento e medicalização com abstinência total. O impacto, portanto, é para os serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do SUS, que está fragilizada e subfinanciada. Esse desfinanciamento impacta no tipo de cuidado e atendimento às pessoas em sofrimento mental e as que consomem drogas e demandam atendimento. Esse cuidado, que deveria ser sob a ótica da redução de danos, está sendo negligenciado e atacado”.

A professora acrescenta que o discurso moralista, conservador e biomédico reforça a incapacidade do indivíduo em sofrimento, submetendo os sujeitos ao um tratamento muitas vezes compulsório e com violações de direitos básicos. A população, principalmente no contexto pandêmico, tem sofrido pela ausência de serviços no território e em liberdade e tem ficado sem a possibilidade de escolha pelo atendimento ambulatorial, seguro, responsável e sob um cuidado integral e ético.

“Não faltam recurso para leitos de internação, mas falta dinheiro público para treinar profissionais no uso de novas tecnologias, para equipar e estruturar a Raps, contratar profissionais habilitados e ampliar a rede ambulatorial. Na prática, há uma desassistência por parte dos governos e a população mais atingida é a que está em piores condições sociais, econômicas e culturais. Para reverter esse cenário, precisamos garantir o financiamento público para serviços públicos. Por isso a defesa de um estado laico no atendimento em saúde mental. O SUS tem uma rede mundialmente reconhecida para atendimento dessas demandas, seja em termos normativos/legais, seja em princípios/concepção, seja em articulação dos movimentos sociais e espaços de controle social, etc.”, explicou.

Ela defende, ainda, que é preciso que haja estratégias que contribuam para reverter a ideia consolidada no senso comum de que pessoas com transtornos mentais e/ou em uso prejudicial de drogas precisam ser confinadas e submetidas ao trabalho, oração e medicação exclusiva. “Há outras possibilidades viáveis, mais baratas, públicas, mais eficazes e éticas para esse cuidado. E cientificamente comprovadas. A Organização Mundial da Saúde (OMS), juntamente com a ONU, tem recomendado que as políticas de enfrentamento no campo da saúde mental, devem garantir a implantação de serviços de qualidade e permanentes que considerem o atendimento em saúde mental baseados na comunidade/no território. Sabemos que a convivência com a diversidade melhora a vida de toda a sociedade”.

Universidades

O adoecimento de discentes e docentes em instituições de ensino superior também é uma preocupação no contexto atual do Brasil. Para a professora Fabíola Xavier Leal, a situação  reflete, sobretudo, o adoecimento em geral da população.

“A universidade não está descolada da sociedade e, portanto, apresenta demandas e situações que estão primeiramente colocadas para os sujeitos em sua vida cotidiana pela sobrevivência diária por condições de vida, saúde, de trabalho, moradia, alimentação, entre outras.  Há uma multiplicidade de fatores ligados ao adoecimento da comunidade acadêmica, incluindo técnicos, em todas as áreas. Neste momento pandêmico, as adversidades advindas do trabalho e estudo remoto intensificaram demandas que já estavam colocadas anteriormente”, disse.

Há, ainda, segundo Fabíola, um conjunto de outras questões como: estrutura precarizada de trabalho e estudo; ausência de suporte para manutenção do estudante na universidade (bolsas, moradia, alimentação, etc.); pressão por produtividade na lógica da educação focada em habilidades e competências; supervalorização de algumas áreas de conhecimento em detrimento de outras; e um “modelo” acadêmico competitivo que suscita a busca pela excelência e com parâmetros descolados da realidade concreta sobre a produção de conhecimento na sociedade capitalista. “Ou seja, o preenchimento do lattes como principal identidade das nossas vidas, cobranças por produções, formação aligeirada, coeficientes como balizadores de melhores estudantes, rankeamento em todas as esferas, manutenção da nota dos cursos de graduação e pós-graduação”.

A professora da Ufes explica que tudo isso está nesse pano de fundo que remete ao sofrimento individual e coletivo do espaço das universidades e sugere medidas que precisam ser implementadas com urgência:

  1. 1 – condições de saúde e higiene do campus, segurança, canais de denúncia de assédios, bolsas para permanência na universidade, entre outros;
  2. 2 – uma implementação imediata de um plano operacional em saúde mental como uma política universitária;
  3. 3 – pesquisas/levantamentos sobre as condições de vida da população acadêmica;
  4. 4 – Serviço de Atendimento Unificado (tanto para estudantes quanto servidoras/es);
  5. 5 – Ligas Acadêmicas em saúde mental, comitês, plano em saúde mental da universidade elaborados e discutidos pelos diferentes sujeitos e implementados por meio de normativa institucional;
  6. 6 – aprimoramento das políticas e serviços de apoio psicológico e psicopedagógico aos universitários (programas de assistência à saúde mental da/do estudante, mas, sobretudo, articulação com a rede comunitária e do SUS);
  7. 7 – ações de promoção de saúde;
  8. 8 – formação em saúde mental ampla, franca, crítica e objetiva para toda a comunidade acadêmica que demandar;
  9. 9 – foco em estudos e pesquisas sobre abordagens psicossociais que amenizem o desespero e desamparo emocional não só da população acadêmica mas de toda a sociedade;
  10. 10 – suspender a preocupação conteudista a partir de uma educação com função socializadora, reflexiva e crítica.
Incertezas

A estudante de Serviço Social da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Luana Portela, representante discente da Abepss da Região Sul I, integrante da diretoria da Enesso, afirma que durante a pandemia, o adoecimento mental, que já existia, ficou mais forte. Isso ocorreu, segundo ela, em razão de mudanças de hábitos, mudanças de espaço, isolamento social, estilo de vida menos saudável, resultando em relatos de depressão e ansiedade.

“É meio difícil ficar bem mentalmente durante um caos. Um dos fatores que mais influenciou no aumento do adoecimento mental entre as/os discentes foi a incerteza. Há incerteza de quando vai conseguir se formar porque há dificuldades para estudar em um espaço que não é a sala de aula. É muito difícil se concentrar dependendo do espaço que você mora. Outros fatores, como convívio familiar conturbado, medo da morte, assim como medo de morte de pessoas queridas e perda de convívio social, também influenciam muito no adoecimento mental”, disse.

Luana Portela acrescenta que é preciso que as instituições de ensino superior pensem em medidas para enfrentar a situação que atinge as suas comunidades. “Na universidade na qual curso a graduação de Serviço Social, a UFPR, contamos com 33 psicólogos clínicos, atuando em vários setores, para tentar suprir a necessidade. Pode parecer um número alto, mas nem sempre é suficiente por conta das demandas. Outra atitude que a universidade tomou foi a criação de campanhas, com lives sobre saúde mental. Penso que seja necessário trabalhar com a rede de saúde, pois apenas com os profissionais de saúde mental de dentro da universidade não é possível atender a todas/os que estão adoecendo ou já adoeceram”.

A professora Fernanda Almeida, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da Faculdade Paulista de Serviço Social (Fapss-SP), explica que o ensino é uma atividade que exige corpo e presença, uma relação de troca. “Na medida que tivemos que passar pelo isolamento, essas relações foram interrompidas. Sem internet adequada, com rotina alterada do professor e volume muito maior de trabalho, houve um momento de muito adoecimento porque o espaço coletivo foi achatado. E isso se somou a todo o processo da pandemia e dos ataques à nossa democracia e aos avanços que contraímos coletivamente no país”.

Capitalismo

A professora Rachel Gouveia Passos, da Escola de Serviço Social da UFRJ, acrescenta que é necessário que haja pesquisas e estudos que identifiquem o processo de adoecimento psíquico de estudantes e professores nas universidades públicas e privadas. É importante, segundo ela, ter mais atenção sobre o que vem ocorrendo e entender os principais fatores para esse aumento no ensino superior.

“Precisamos olhar para a instituição e as relações sociais. As determinações sociais têm implicação no processo de subjetivação das pessoas e precisamos entender o que leva ao adoecimento e ao sofrimento. Nem todo sofrimento leva ao adoecimento psíquico. A sociedade capitalista produz sofrimento e adoecimento. Ela está estruturada nas desigualdades sociais, nas opressões de gênero, de raça, etnia, sexualidade. E isso tem rebatimentos no processo de constituição do sujeito. Algumas pessoas podem adoecer e outras experimentar a vida com intenso sofrimento com impactos nas singularidades. O quanto as instituições reproduzem essa lógica opressora e de exploração? E há particularidades na formação social brasileira. As faculdades são estruturadas pelo racismo, pelo patriarcado, existe uma hierarquização dos poderes que vão forjar tanto as epistemologias, como também as representações, quem terá acesso para entrar e para permanecer”, explica.

Ela acrescenta que o processo de precarização e desmonte das instituições também é fator importante, uma vez que docentes e técnicos são impactados pela não reposição de profissionais, aumento da demanda e operacionalização do trabalho, e uma lógica nociva de produtividade e eficiência. E ainda há a burocratização, com falta de tempo para pesquisar e refletir. Em alguns casos estas situações estão vinculadas às opressões. Há sofrimentos e angústias na busca por representação de grupos que entram na universidade e que historicamente não tinham espaço dentro dela e que, portanto, não se reconhecem lá.
“Fatores estruturais e estruturantes da sociedade se acentuam no atual cenário. É preciso pensar o desmonte das próprias condições de trabalho e o agenciamento existente em relação à hierarquização dos saberes e dos poderes estruturados por uma lógica racista, LGBTfóbica, misógina, patriarcal, que é completamente desigual para homens e mulheres, pretos e brancos, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+. Há apagamento dessa representação. Precisamos de políticas de cotas para graduação e pós-graduação e também para concurso docente. E formação continuada, com inclusão de epistemologias que vão problematizar e trazer para o centro esses elementos. Precisamos de um espaço de escuta como um canal possível para fazer o agenciamento junto com alunos e alunas que vivenciam situações de violência em sua vida e chegam na universidade e acabam vivenciando violências que estão naturalizadas em nossa sociedade. Há o assédio moral que silencia mulheres e as taxa de loucas, principalmente quando estão na chefia. Há Insônia, ansiedade, Burnout, etc.. Saúde mental é falar de vida”, concluiu.

Filie-se à ABEPSS

A ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social) convida você a se juntar a nós! Como membro, você terá a oportunidade de contribuir para o fortalecimento do ensino e da pesquisa em serviço social no Brasil.

clique aqui