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Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência: avanços históricos estão ameaçados

21/09/21 às 00:00
Os avanços que o Brasil conquistou nas políticas voltadas para as pessoas com deficiência nas últimas duas décadas correm risco diante dos retrocessos e dos ataques com origem no Governo Bolsonaro e em setores da sociedade que apostam na exclusão dessas/es cidadãs e cidadãos no retorno a uma cultura de reclusão e tutela. Os passos atrás que estão sendo dados dificultam que as pessoas com deficiência sejam incluídas, estejam visíveis nos lugares e acessem benefícios, retirando delas o direito a uma vida plena e a participar de decisões que impactam suas vidas.

Um dos principais avanços no Brasil aconteceu a partir da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU, incorporada à Constituição Federal em 2009. A partir dali, os movimentos sociais ganharam novas formas de agenciamento que foram benéficas para o debate público trazendo questões que a partir de 2017 começaram a ser perdidas.

No momento em que é lembrado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência (21 de setembro), é importante ressaltar que, antes da Convenção, a luta das pessoas com deficiência era basicamente pelo direito de existir. O novo gás que a legislação trouxe permitiu avançar para outras dimensões em intersecções com outros marcadores, em intercâmbio com outros movimentos sociais como coletivos de mulheres, movimento negro, LGBTQIA+, entre outros. O debate avançou na direção de que a deficiência é apenas mais uma dimensão da vida da pessoa que vive com ela, mas que não resume o que ela é.

Direitos negados

Eliane Wanderley de Brito, assistente social e trabalhadora do SUS e do Suas na cidade de Araguaína, no Tocantins, referência na região, lida diariamente com os resultados dos retrocessos dos avanços que o Brasil havia alcançado. Eliane é uma pessoa com deficiência e explica que, a partir da Convenção, foram criados marcos regulatórios importantes.

“A Lei Brasileira de Inclusão, aprovada em 2015, é um marco e consolidou uma série de decretos, unificou a legislação. Antes tivemos o Plano Viver sem Limites. Não há como tratar disso sem citar os retrocessos que temos vivido. Começamos a sofrer com a nova lei do Benefício de Prestação Continuada (BPC), porque ela é apresentada como se fosse um avanço pelo Governo e pela mídia. Mas, na verdade, ela vai limitar o acesso das pessoas idosas e das pessoas com deficiência ao benefício do INSS e vai prejudicar os mais vulneráveis. A política de educação inclusiva também é um retrocesso. Traz uma perspectiva cruel de exclusão. Sempre lutamos na perspectiva da igualdade e isso está sendo violado” explicou.

A assistente social acrescenta que os direitos na Saúde e na Assistência Social estão cada vez mais seletivos, perdendo o caráter de universalidade. “Eu, como pessoa com deficiência, já vivencio as consequências desse retrocesso. Trabalho na Saúde e na Assistência Social. O apavoramento das pessoas já é visível porque elas sabem que não poderão acessar as políticas públicas. Há desemprego. Muitas pessoas passaram a ser pessoas com deficiência por conta da Covid-19. É um público que vai para a Assistência Social, para o benefício do BPC. As mudanças implicam no não acesso de grande parte da população. Desconsideraram a avaliação biopsicossocial, ignorando os determinantes sociais na vida da pessoa que procura a política. É algo da convenção internacional. E o Brasil está desrespeitando”.

O papel da/o assistente social é lutar para que os direitos sociais sejam viabilizados, segundo Eliane. “A gente não garante direitos. Executamos na ponta as políticas públicas. Conhecemos os desenhos das políticas e as amarras burocráticas que inviabilizam os direitos. Preciso compreender a pessoa em uma totalidade. Precisamos fazer com que a política seja reconhecida como política de direitos. As políticas trazem um ideal de dignidade e por isso são tão atacadas. É importante entender que a deficiência é um marcador na vida das pessoas, um marcador de opressão no Brasil. Temos um sistema que não oferece dignidade. As pessoas não têm o direito de ir e vir. Estamos assistindo o retorno ao enclausuramento e as pessoas com deficiência não estarão presentes nos espaços de representatividade. É preciso reafirmar que ‘nada para nós sem nós’. Estão voltando ao modelo de tutela que cerceia o direito à participação e decisão sobre a própria vida”.

Corpos diferentes e visíveis

Essa mesma perspectiva é compartilhada pela assistente social Francine de Souza Dias, coordenadora do GT Deficiência e Acessibilidade da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ela explica que a primeira articulação ente deficiência e gênero, por exemplo, foi feita de maneira mais substancial a partir da Convenção da ONU. “Houve uma ganho com novas formas de visibilidade e outras dimensões”.

Apesar dos avanços do início dos anos 2000, Francine de Souza Dias, que também é pesquisadora na Rede Zica de Ciência Sociais da Fiocruz, aponta o retrocesso significativo que acontece nos últimos anos. “Houve um freio nos avanços e houve retrocesso. Há uma violência em relação às instituições, perda do debate no nível de estado e ataque aos conselhos de direitos. Isso faz ocorrer uma desmobilização que ganha força no governo Bolsonaro, o que enfraquece os espaços de participação social. Houve uma reação contrária forte ao desmonte e conseguimos frear um pouco, mas os efeitos chegam às práticas. Temos muita perda de acesso à informação e retirada de documentos que antes eram públicos, por exemplo”.

A pesquisadora lembra que as mudanças na política de inclusão retrocedem para práticas de mais de 40 anos atrás, antes mesmo da ditadura civil-militar, pois estão aliadas a uma ideia de segregação, pior que a de integração, sem inclusão. “A fala do ministro da Educação de que crianças com deficiência atrapalham as outras na escola é expressão disso. E isso vai se reproduzindo em tudo: trabalho, lazer, acesso aos espaços públicos, tudo. O debate primário é sobre acessibilidade, porque sem ela não há nada mais. E o debate sobre acessibilidade é esvaziado quando as pessoas com deficiência são segregadas. As pessoas existem em corpos diferentes com necessidades e recursos diferentes”.

O que ocorre no Brasil é que há direitos, mas não há políticas públicas que deem materialidade a esses direitos das pessoas. Os direitos não se traduzem em serviços, em um cotidiano de possibilidades para as pessoas e em acessibilidade. Francine de Souza Dias ressalta que o acesso a benefícios é cada vez mais dificultado porque o Governo Federal desobedece à própria Convenção que ratificou e avalia as pessoas requerentes em uma perspectiva apenas biomédica.
“Tem que ser biopsicossocial, conforme pesquisa realizada no Brasil inteiro que criou o Índice de Funcionalidade Brasileiro Modificado (IFBRM), que está pronto e aprovado há mais de dois anos pelo Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência). Organizações de todo o Brasil já se manifestaram em favor. Os ministérios ignoram um instrumento que teve milhões de reais em investimento. Com ele, se avalia a dimensão de toda a deficiência e a dimensão ambiental e a repercussão no nível pessoal de cada indivíduo. Isso influencia na concessão de benefícios no INSS, como o BPC, por exemplo. A produção do problema não se restringe ao corpo, mas se dá no âmbito da sociedade”, explicou.

Serviço Social

A pesquisadora acrescenta que a formação de assistentes sociais impacta no modo como a/o profissional pensa na pessoa com deficiência, em como realiza o atendimento, em como defende a atua em consonância com o projeto ético-político da profissão. Se o tema não for devidamente tratado com produção científica e pesquisa, haverá dificuldade para a/o assistente social se projetar ética e politicamente no cotidiano de forma alinhada com a agenda das pessoas com deficiência e com as discussões no Brasil e no mundo.

“O Serviço Social está nos espaços de atendimento desde sempre. Porém, a nossa presença fundamental nos espaços não se traduziu em uma produção teórica robusta na área de deficiência no Serviço Social. Há um problema pelo número reduzido na produção científica. É preciso avançar e dialogar com quem está no campo para legitimação da produção teórica sobre o tema. Isso contribui para entender as relações sociais e como a sociedade se estrutura dentro de uma sociabilidade capitalista”, defendeu.

Foi por conta desse papel de assistentes sociais nos espaços de atendimento que Ana Maria de Paula Silva resolveu cursar Serviço Social. Ela é estudante de Serviço Social na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e desenvolveu distrofia muscular, sendo hoje uma pessoa com deficiência.
“Optei pelo curso porque vi que seria importante continuar tomando minhas decisões. É necessário que a gente seja visível, que estejamos em todos os ambientes. E o curso de Serviço Social é formador de consciência sobre a carga histórica e as razões para estarmos onde estamos. Temos o compromisso com a visibilidade das políticas públicas que precisam ser voltadas para todas/os, independentemente de quem seja e das diversas dimensões que integrem sua vida. Nós não somos a nossa deficiência. A sociedade é que não está adequada para nos receber. Se a sociedade estivesse preparada para receber pessoas com deficiência, as limitações impostas pela deficiência não seriam tantas”, disse.

Acesso

Ana Maria lembra que as barreiras arquitetônicas, algo já tão debatido e básico, continuam sendo um grande problema e o acesso físico aos locais ainda é uma questão no Brasil, mesmo nos locais destinados ao atendimento às pessoas com deficiência. Sair de casa é um desafio para essa população.

“E isso está somado às barreiras sociais e de ordem econômica. Próteses e órteses têm valores inacessíveis. Isso dificulta. Na pandemia, muitas famílias que recebiam tratamento de Fisioterapia deixaram de receber e não houve uma solução para isso. É preciso ter em mente que deixar de fazer a Fisioterapia pode significar a imobilidade para pessoas com deficiência. Há uma luta por mudanças nas avaliações que interferem na concessão de benefícios. Os cortes e negativas à concessão de benefícios são arbitrários. Não há um olhar para as condições da família e para a necessidade específica a partir de cada deficiência. No mercado, há vaga para a pessoa com deficiência trabalhar, mas como ele chega ao trabalho? Aí entra a equidade. Quem tem mais dinheiro consegue mais acesso. Há também a visão de que a presença da pessoa atrapalharia. Dão a vaga, mas não dão as condições. Aí depois vão dizer que a pessoa atrapalha, como disse o ministro da Educação sobre crianças com deficiência incluídas em escolas comuns. Pedir benefício é algo humilhante. Duvidam e dificultam. A visão é de que seja um favor ou esmola. Estamos em um período de retrocesso e de dificuldade de acesso ao mínimo porque os serviços são vistos como gasto e não como atendimento às pessoas que precisam e que têm direito de serem assistidas ”, concluiu.

Desafio

É desafiador garantir formas que proporcionem a acessibilidade, de forma a assegurar a presença e participação das pessoas com deficiência em diferentes espaços, em especial em espaços de formação e qualificação profissional. Formar profissionais e trabalhadoras/es com deficiência, assim como qualificar esses sujeitos para inserção no mercado de trabalho, é fundamental na luta contra as históricas exclusões.

A gestão da Abepss “Aqui se respira luta!” vem refletindo sobre as questões apontadas aqui, reafirmando sua responsabilidade enquanto instituição de ensino e pesquisa na ampliação das ferramentas que garantam acessibilidade. A pandemia do novo coronavírus tem apresentado particularidades para as ações da Associação e, com isso, também novas formas de comunicação e possibilidades de trocas com a categoria.  Isso não se dá sem desafios. E um dos desafios que precisa ser enfrentado com urgência, coletivamente, é a construção de ferramentas que garantam o acesso de todas/os nas atividades promovidas pela Abepss.

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